Mensalão
Este é um pronunciamento que jamais deveria ser feito. Mas, ao
mesmo tempo, Senhor Presidente e Senhores Ministros, este é um
pronunciamento que deve ser feito em razão de fato notório ocorrido na
última sessão de julgamento.
(Em sessão da semana passada, o
ministro Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal, tolheu
o direito do seu colega Ricardo Lewandowski de se manifestar. Os dois
bateram boca e a sessão foi suspensa por Joaquim.)
Louvo a
iniciativa do eminente Ministro Presidente, que, espontaneamente e de
modo leal, vem de reafirmar o seu respeito por esta Suprema Corte e
pelos Ministros que a compõem,
além de haver
reconhecido, em gesto que se reveste de significativa importância, como
não poderia deixar de fazê-lo, o direito de cada Juiz deste Tribunal de
livremente proferir a sua decisão, pois os direitos e garantias
fundamentais dos cidadãos dependem, essencialmente, para efeito de sua
integral proteção, da liberdade e independência com que os
Magistrados, mais ainda os deste Supremo Tribunal Federal, exercem o ofício jurisdicional.
O
relevo a ser dado a essa afirmação, tal como corretamente o reconheceu o
Senhor Presidente desta Corte, decorre do fato de que,
sem Juízes independentes, não pode haver cidadãos livres no contexto de uma
sociedade fundada em bases democráticas.
O
episódio que se registrou na semana anterior, muito mais do que mero
incidente, supera, por suas consequências e intensa repercussão, a
esfera pessoal de seus ilustres protagonistas para se projetar em uma
dimensão eminentemente institucional, constituindo, por isso mesmo,
motivo que deve merecer séria reflexão por parte dos Juízes desta Corte
Suprema.
Não nos olvidemos, jamais, Senhor Presidente e
Senhores Ministros, das sábias palavras do saudoso Ministro LUIZ
GALLOTTI, que lançou grave advertência sobre as consequências do
processo decisório nesta Corte, ao enfatizar que o Supremo Tribunal
Federal, quando profere os seus julgamentos, também poderá, ele
próprio,ser “julgado pela Nação” (RTJ 63/299, 312) e pelos cidadãos
desta República.
Ninguém desconhece que divergências representam
natural consectário de julgamentos colegiados e que, mesmo manifestadas
com ardor, veemência e firme convicção no seio das Cortes Judiciárias
(“Fortiter in re, suaviter in modo”), valorizam-lhes as decisões e
representam inestimável fator de legitimação dos próprios
pronunciamentos dos Tribunais.
Quando
os Fundadores da República conceberam esta Nação, promulgando, em 1891,
a Constituição do novo Estado brasileiro, atribuíram ao Supremo
Tribunal Federal um papel de imenso relevo na jovem República,
instituindo-o como um espaço, por excelência, de liberdade e
qualificando-o como um veto permanente e severo ao abuso de autoridade,
ao arbítrio do poder e à prepotência do Estado.
É
precisamente por essa razão que as práticas processuais e o exercício
da jurisdição, no âmbito desta Suprema Corte, devem respeitar, nas
relações entre os Juízes que a compõem, o mesmo espírito de liberdade
que representa a própria essência da alta missão constitucional para a
qual este Supremo Tribunal Federal
foi idealizado e instituído.
Assim
como ninguém tem o poder de cercear a livre manifestação dos Ministros
que integram o Supremo Tribunal Federal, também cada um dos Juízes desta
Corte tem o direito de expressar, em clima de absoluta liberdade, as
suas convicções em torno da resolução dos graves litígios que lhes são
submetidos, sob pena de
comprometimento do necessário coeficiente de legitimidade que deve qualificar as decisões proferidas por este
Supremo Tribunal.
Os
Juízes do Supremo Tribunal Federal, tal como reconhecido por seu
Presidente no pronunciamento que ora vem de fazer, têm consciência de
que o exercício do poder, em particular do poder jurisdicional, somente
se
legitimará com o diálogo, com o debate, com o respeito à
alteridade, com a aceitação da diferença, com o acolhimento do
pluralismo de ideias e com a coexistência harmoniosa entre as diversas
correntes de ação e de
pensamento, pois o Poder Judiciário, em nosso País, não pode ser uma Instituição dividida e, muito menos,
fragmentada
por eventuais dissensões que se registrem em seu corpo orgânico,
especialmente se se reconhecer que o propósito maior do Supremo Tribunal
Federal é o de servir, com integridade e respeito, ao que proclamam a
Constituição e as leis da República.
E, nesse contexto,
torna-se imperioso relembrar a alta significação política e jurídica de
que se revestiram, no processo de edificação da República, de construção
da Federação e de consolidação da prática dos direitos fundamentais, os
votos vencidos proferidos em memoráveis julgamentos, por Juízes
eminentes desta Corte
Suprema, cujas lições ainda iluminam os nossos
caminhos, ajudando-nos a forjar, em nossos espíritos, a consciência
superior da democracia, da liberdade e da cidadania.
Aquele
que profere voto vencido, como tive a oportunidade de dizê-lo, certa
vez, quando celebrei a posse do eminente Ministro MARCO AURÉLIO na
Presidência desta Corte, não pode ser visto como um espírito isolado nem
como uma alma rebelde, pois, muitas vezes, como nos revela a História, é
ele quem possui, ao externar posição divergente, o sentido mais elevado
da ordem, do direito e do sentimento de justiça, exprimindo, na solidão
de seu pronunciamento, uma percepção mais aguda da realidade social que
pulsa na coletividade, antecipando-se, aos seus contemporâneos, na
revelação dos sonhos que animarão as gerações futuras na busca da
felicidade, na construção de uma sociedade mais justa e solidária e na
edificação de um Estado fundado em bases genuinamente democráticas.
Aquele
que vota vencido, por isso mesmo, Senhor Presidente e Senhores
Ministros, longe de sofrer injusto estigma por haver exercido
legitimamente o direito ao dissenso, deve merecer o respeito de seus
contemporâneos, especialmente daqueles que não compartilham de seu
pensamento, pois a História tem
registrado que, nos votos vencidos, reside, algumas vezes, a semente das grandes transformações.
Tem
inteira razão, pois, RAYMUNDO FAORO, quando enfatiza que o voto
vencido, muitas vezes, “É o voto da coragem, de quem não teme ficar
só...” (“apud” FLÁVIO FLORES DA CUNHA BIERRENBACH, “Quem tem medo da
Constituinte”, prefácio, 1986, Paz e Terra).
Em
suma, Senhor Presidente e Senhores Ministros, é preciso que fique claro
que o Supremo Tribunal Federal, compreendido em sua incindível unidade
orgânico-institucional, é mais importante do que todos e cada um de seus
Ministros. Cabe-nos, desse modo, como Juízes da Suprema Corte,
velar pela integridade de suas altas funções, sendo-lhe fiéis no
desempenho da missão constitucional que lhe foi delegada.
É
por isso que jamais poderemos transigir em torno de valores
inderrogáveis como a respeitabilidade institucional, a dignidade
funcional e a integridade desta Corte Suprema.
E é com esse
espírito e com essa motivação, Senhor Presidente e Senhores Ministros,
que me permiti submeter, respeitosamente, ao Egrégio Plenário do Supremo
Tribunal Federal as presentes reflexões, que me pareceram necessárias e
oportunas, pois jamais devemos desconsiderar o fato de que o legado
desta Corte Suprema, transmitido, continuamente, de geração a geração, a
todos os Juízes que transpuseram os seus umbrais, é um legado imenso,
duradouro e indestrutível.