O desejo é livre hoje? Eu arriscaria o oposto: nunca o desejo foi tão reprimido. Coluna de Luiz Felipe Pondé, via Gazeta do Povo:
“O 
desejo pinga”, famosa frase de Nelson Rodrigues. Mas, para além do 
óbvio, o que ela quer dizer? Há uma matéria concreta no desejo que 
escorre, por exemplo, pelas pernas das mulheres. Eu sei. Dirão os 
inteligentinhos que vivemos na época da liberação do desejo, inclusive 
das mulheres. Eu arriscaria o oposto: nunca o desejo foi tão reprimido.
Mesmo em
 meio à inquisição havia mais respeito pelo desejo. Por que? Porque não 
há forma mais honesta de se reconhecer o desejo do que temê-lo. Qualquer
 pessoa que tenha visto o desejo escorrer pelas pernas, molhando a saia,
 sabe que o mundo público é, por definição, hostil ao desejo.
Enganamo-nos
 declarando que o direito ao desejo é um direito universal. Apenas os 
ingênuos ou os mentirosos creem nisso. Há aqueles mesmo que creem no 
ensino do desejo nas escolas. Não. O melhor ensino acerca do desejo é 
seu silêncio. O desejo cresce no silêncio e na escuridão. A luz é seu 
habitat natural muito raramente. Luz demais mata o desejo, já sabiam os 
vampiros.
Mas, 
onde reside a pior forma de repressão já criada contra o desejo? Reside,
 entre outras coisas, na criação de uma política do desejo. A 
civilização só respira graças ao temor que alimenta em relação ao 
desejo. Qual a diferença entre a repressão, digamos, medieval, ao 
desejo, e a contemporânea?
A 
contemporânea decidiu que o desejo é “saudável” e é “um direito de todo 
cidadão”, e, dessa forma, o transformou em matéria constitucional. O 
Sapiens, talvez já cansado de toda sua evolução, chegou à conclusão de 
que o desejo só pode existir se for balanceado caloricamente.
Seria 
possível imaginar um mundo sem desejo? Claro que sim. Basta torná-lo 
absolutamente correto e seguro. Eis o pecado máximo do desejo: não cabe 
na geometria do contrato social. Quando o soltamos numa praia deserta 
cheia de pessoas que chegaram ao estágio de não odiar ninguém, já 
vivemos no mundo sem desejo. Alguém conhece um lugar com menos desejo do
 que os clubes de nudismo dos anos 1960?
A 
pornografia reversa é a condição de um mundo em que o desejo virou 
matéria constitucional. O resultado, nos cantinhos que restam de 
escuridão, serão mulheres indo trabalhar sem calcinha para, no silêncio 
das suas pernas, sonhar que alguém sabe de sua condição. Nas músicas de 
má qualidade, em que o desejo é cantado como um “estado natural”, 
encontramos uma das faces da sua miséria.
Para 
além de seu estado de líquido que escorre, só há dois modo de relação 
com ele: sua condenação ou nossa misericórdia. Por isso, a tradição 
religiosa é mais sábia do que a política de direitos ou arte liberada da
 vergonha. Onde não há vergonha, não há desejo.
A 
modernidade, em meio às suas inúmeras qualidades, carrega uma, 
disfarçada de amor: sua decisão de eliminar as sombras, de uma vez por 
todas. O desejo cresce e se torna robusto quando o caçam pelas ruas. 
Quando o lançam às chamas do inferno, quando lhe negam o direito a 
respirar.
Há uma 
economia muito sofisticada nessa forma de vida, pouco comum num mundo 
que escolheu o bem-estar como paradigma. Não existe tal coisa chamada de
 “desejo do bem”.
Não me 
entendam mal. Não faço aqui uma oração pela destruição do bem-estar. Os 
inteligentinhos, na sua tradicional incapacidade de entender qualquer 
coisa que não seja traduzida na forma da razão militante, certamente me 
entenderão mal. Mas não há como falar de desejo sem incorrer no risco de
 ser compreendido como algum tipo de Sade cansado. Morremos de medo do 
desejo, por isso decidimos vesti-lo de roupas coloridas e determinar que
 é Carnaval o ano inteiro e que, se você cansar da música e da festa 
ruidosa, você é contra o desejo.
Uma das 
formas mais típicas de destruição de desejo é dizê-lo como o “desejo do 
outro”. Pois este é sempre meu, nunca do outro. O outro é sempre objeto,
 Ou melhor: o outro e eu, movidos pelos mesmo líquido que escorre pelas 
pernas em direção à vergonha pública.
Nas 
formas de organização racional moderna, típicas do mundo do dinheiro, os
 que teorizaram sobre a liberação do desejo contra a repressão burguesa 
deste foram seus repressores mais bem-sucedidos.
Falando 
em nome do “é proibido proibir”, inauguraram a maior e mais extensa 
forma de negação do próprio desejo, porque o declararam um bem público. 
Enquanto ele era pecado, feito do sangue do Satanás, sobrevivia no seu 
elemento natural, o medo. Quando saiu para as ruas, tornou-se banal como
 um suco de frutas natural.

 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário