DIA DO FICO, QUE FAZ 200 ANOS, NÃO FOI 1º PASSO DA INDEPENDÊNCIA, DIZEM HISTORIADORAS!
Por Sylvia Colombo, para Folha de São Paulo, em 09/01/2022
"Como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto:
diga ao povo que fico".
Decorada na escola,
repetida em filmes históricos, evocada como um provável princípio de um
patriotismo brasileiro, a frase talvez nunca tenha sido de fato dita por
dom Pedro, naquela época ainda príncipe regente do Brasil — pelo menos
não da forma como ficou conhecida.
O Dia do Fico, cujos 200 anos celebram-se neste domingo (9), vem sendo desconstruído pela historiografia contemporânea.
"Há uma lenda dourada sobre o Dia do Fico, que vê a
Independência como destino do Brasil, mas a verdade é que a
Independência não estava escrita nas estrelas. Naquela época, outras
opções estavam em debate e havia distintas pressões agindo. A ideia de
que esse episódio ligou o despertador da Independência não é real", diz à
Folha a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz.
Nem a frase é exatamente essa nem o Dia do Fico pode ser
considerado o primeiro passo do que seria a Independência do Brasil,
proclamada em 7 de setembro de 1822.
Onde estão, então, os problemas dessa versão?
O Dia do Fico, como se conhece o episódio de modo geral, foi a
expressão de revolta de dom Pedro que, ao ser convocado a retornar a
Portugal pelas Cortes de Lisboa, rebelou-se e, de uma das janelas do
Paço Imperial, no Rio de Janeiro, teria dito: "Como é para o bem de
todos e felicidade geral da nação, estou pronto: diga ao povo que fico".
Só que este não é o registro original e sim o que foi alterado
para entrar para a história. Segundo o primeiro edital publicado sobre a
sessão, a frase dita pelo regente teria sido outra, bem menos enfática
ou heroica.
Ele disse: "Convencido de que a presença da minha pessoa no
Brasil interessa ao bem de toda a nação portuguesa, e conhecido que a
vontade de algumas províncias assim o requer, demorei a minha saída até
que as Cortes e meu Augusto Pai e Senhor deliberem a este respeito, com
perfeito conhecimento das circunstâncias que têm ocorrido".
Para Schwarcz, a frase é uma construção, que fez parte da
utilização da pessoa de dom Pedro pela elite imperial como uma figura
simbólica. "A elite controlou o fantoche, e esse retoque da frase é
apenas um dos aspectos dessa narrativa que esteve por trás da saída
imperial para a crise daquele momento", afirma.
A análise da frase inicial, segundo a historiadora Lúcia Bastos
Pereira das Neves, "permite perceber que dom Pedro não estava pensando
ainda em uma separação do Brasil com relação a Portugal".
Ela alerta para o fato de que "não se pode ver a história com
os olhos de quem já sabe o que aconteceu depois. Quando disse a frase do
Dia do Fico, dom Pedro não tinha convicção sobre o que ocorreria —
vinha titubeando, estava pressionado, estava em dúvida sobre suas
opções".
Voltando um pouco no tempo: a família real portuguesa estava no
Brasil desde 1808. No ano anterior, temendo o avanço de Napoleão sobre
Portugal, o então príncipe regente dom João embarcou com toda a família
ao Brasil, com o apoio político e logístico da Inglaterra. Durante os 13
anos em que permaneceu aqui, dom João estabeleceu a corte no Rio de
Janeiro, promovendo várias melhorias na cidade e na economia da colônia.
Em 1815, o Brasil teria seu status elevado, passando a fazer
parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Na prática, a
ex-colônia modernizou-se. Houve a abertura dos portos para nações
amigas, que diversificou e aumentou o comércio, e novos edifícios
públicos foram construídos.
Também foi possível, por iniciativa de dom João, passar a
imprimir jornais no Brasil, algo que era proibido durante a época
colonial. Surgiu a Imprensa Régia, que publicava a Gazeta do Rio de
Janeiro, e foram criadas instituições como a Real Academia Militar, o
Jardim Botânico, o Banco do Brasil, o Teatro São João (hoje Teatro João
Caetano) e outras.
A família real também mandou vir a Biblioteca Real de Portugal,
com um acervo estimado em 60 mil volumes, que daria início ao que hoje é
a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Todos esses avanços foram ameaçados depois, quando ocorreu a
Revolução Liberal do Porto, em 1820, em Portugal. Tratou-se de um
movimento liberal, nacionalista e constitucional, que buscava
reestruturar o império, tendo novamente Portugal como centro político e
administrativo.
Para isso, era essencial que dom João 6º retornasse à metrópole
e mais, jurasse a Constituição. O plano era desmantelar a ideia de
monarquia como as do Antigo Regime. A monarquia "modernizada" teria o
rei quase como uma figura simbólica e cerimonial, enquanto o poder
político de fato seria exercido pelas Cortes.
Dom João partiu para Portugal para enfrentar a crise e deixou
Pedro, então com 22 anos, à frente do país. Antes de viajar, ele teria
dito: "Pedro, se o Brasil se separar de Portugal, prefiro que seja para
você, que vai me respeitar, e não para alguns desses aventureiros".
Embora não haja comprovação histórica de que a frase tenha sido dita, é
outro desses episódios que entraram para a narrativa oficial da
Independência.
As Cortes, no entanto, queriam também que dom Pedro voltasse e
emitiram um decreto com esse intuito. Segundo o plano, as províncias do
Brasil passariam a responder diretamente a Lisboa até que uma junta
escolhida por Portugal fosse designada para governar o país.
Para a historiadora Isabel Lustosa, o momento do Fico está
totalmente vinculado às ações das Cortes de Lisboa. "Os liberais
brasileiros, inicialmente, ficaram satisfeitos com a revolução
constitucionalista que aconteceu na cidade do Porto, em razão das
liberdades que seriam concedidas, especialmente a liberdade de imprensa.
Porém, logo começaram a perceber que as medidas das Cortes apontavam
para um retrocesso político e econômico do Reino do Brasil."
Isso porque, apesar de serem pessoas com ideias liberais, logo
perceberam que seus interesses econômicos e sociais estavam sob risco,
caso o Brasil, como queriam as Cortes, fosse novamente reduzido em sua
autonomia, até eventualmente ser transformado de novo em uma colônia.
"Esses homens enxergaram no processo o prejuízo que recairia
sobre seus interesses e se uniram, no final de 1821, em defesa dos
mesmos", afirma Lustosa.
Uma das saídas que foi ganhando força entre a elite brasileira
era pressionar o regente dom Pedro a permanecer aqui, evitando a
minimização do status do Brasil, ao mesmo tempo que se aniquilaria a
possibilidade de uma revolução independentista como as que vinham
ocorrendo em outros países da região, com guerras sangrentas e processos
de fragmentação territorial no que antes eram os vice-reinados
espanhóis.
"A permanência de dom Pedro era importante do ponto de vista
institucional, pois ele representava a monarquia e o regime da moda,
digamos assim, que era o da monarquia constitucional. O medo da
fragmentação do Brasil por falta de um centro de poder que o unisse era
grande", diz a historiadora.
Lustosa concorda com Schwarcz sobre o equívoco de pensar que o
Dia do Fico tenha sido um primeiro passo para uma inevitável
Independência. "Não havia ainda, no final de 1821, quando elementos das
elites do Centro-Sul do Brasil se uniram no Rio de Janeiro pelo Fico, um
movimento pela independência do Brasil. O que havia era uma reação a
uma circunstância: a forma como o governo estava centralizado nas
chamadas Cortes de Lisboa", diz Lustosa.
Dom Pedro, sozinho no Brasil, também hesitou muito em decidir
que passos tomar. Por vezes, mostrava-se em desacordo com o plano de ter
sido deixado para trás para governar o país. Manifestou, em cartas ao
pai, o desejo de voltar para a Europa. Por outro lado, sentiu a enorme
pressão de políticos, comerciantes e da elite brasileira para que
ficasse, mantendo algo de ordem e de unidade no país.
"O medo da Revolução Haitiana também era muito real entre as
elites latino-americanas. No Brasil, a ideia de manter a ordem a
qualquer custo era muito presente entre as pessoas que tinham dinheiro e
poder. Portanto, a ideia de não submissão às ordens das Cortes
respondia mais a esse sentimento de garantia da manutenção de
interesses", diz Lúcia Bastos Pereira das Neves.
"A opção imediata não era a Independência, mas a manutenção dos
privilégios dessa classe e da ordem no país, com a presença de um
monarca. É preciso fazer um esforço para entender como as pessoas
daquela época pensavam".
Mesmo entre as províncias, havia divisão sobre as atitudes a
tomar. Pernambuco e Bahia, por exemplo, estavam mais próximas da ideia
de apoiar as Cortes. No Rio e em São Paulo, as elites se dividiam entre
os conservadores vinculados a José Bonifácio e os mais radicais,
liderados por Joaquim Gonçalves Ledo.
Dom Pedro era muito influenciado pela posição da mulher,
Leopoldina, e não foi diferente nesse episódio. "Dona Leopoldina, como
as princesas de seu tempo, destinadas pelo casamento a garantir acordos
de cooperação internacional, era uma legítima representante dos
interesses da Áustria, onde nascera. Era legitimista, absolutista e
catolicíssima, mas muito inteligente e arguta", afirma Isabel Lustosa.
"Ela compreendeu que a autonomia do Brasil, mesmo que ainda sem
a independência declarada, era fundamental para o sucesso daqueles
interesses."
O momento que culminou na proclamação do Fico ocorreu em 9 de
janeiro, quando o príncipe regente recebeu uma carta assinada por 8.000
pessoas que pediam sua permanência no país. Depois de ler a missiva, dom
Pedro proferiu a frase e acabou permanecendo no Brasil.
"As pessoas gostam da história arrumadinha, com a cronologia
clara, só que ela não é assim. O episódio do Fico tem importância, mas
já é hora de vermos a Independência em um conjunto maior de eventos, que
não ocorreram apenas na Corte do Rio de Janeiro", diz Lilia Schwarcz.
A antropóloga e historiadora sustenta que "havia outros
protagonistas, homens e mulheres, em outras regiões do Brasil. Talvez a
efeméride dos 200 anos seja uma boa oportunidade de fugirmos da agenda
clássica e jogarmos luz nesses outros eventos".
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