Por Denis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia na UFRGS, para O
Estado de S. Paulo, em 03 de junho de 2.023
Piratas eram aventureiros que viviam do saque e
do assalto de embarcações, normalmente carregadas de riquezas, como o
ouro explorado pelos espanhóis em suas colônias americanas.
Distinguiam-se, porém, dos corsários na medida em que estes agiam sob a
cobertura da Coroa de um país, prestandolhe serviços e fornecendo-lhe
uma parte dos seus butins. Um dos mais famosos foi Sir Francis Drake a
serviço da rainha Elisabeth I, tendo sido, precisamente por isso,
agraciado com o título de “sir”. Constituíam uma espécie de armada
dentro da Armada, respondendo diretamente à rainha. Tinham o
reconhecimento régio.
Mercenários são, em terra, descendentes dos corsários,
reportando-se diretamente ao presidente de um Estado, compartilhando com
ele dos benefícios dos sucessos militares. Yevgeny Prighozhin é, nesse
sentido, o corsário de Putin, respondendo até recentemente diretamente a
ele, tendo, inclusive, independência, e não subserviência às Forças
Armadas tradicionais. Um Exército dentro do Exército, com seus
tentáculos se estendendo até a África, além da presença marcante na
invasão russa à Ucrânia. Tudo indica, no entanto, que a criatura se
voltou contra o criador.
A questão que se coloca, contudo, é por que o criador optou por
compactuar com sua criatura rebelde, quando se sabe que Putin tem uma
predileção por aniquilar seus críticos mais acerbos. Boa parte dos
oligarcas que se insurgiu contra ele tropeçou em janelas de altos
andares de vários hospitais, testando a Lei da Gravidade e se
estatelando no chão. Outros foram objeto de envenenamento por intermédio
de guarda-chuvas ou outro instrumento prosaico qualquer. Todavia,
Prighozhin ganhou, pelo momento, um exílio tranquilo graças à
intermediação de um ditador menor, Alexander Lukashenko, de Belarus – se
é que pode haver tranquilidade em meio a autocratas violentos e
arbitrários.
A razão da insurgência, muito provavelmente, se deve à diretriz
do Ministério da Defesa, liderado por Serguei Shoigu, certamente com a
anuência de Putin, obrigando os mercenários a se inscreverem nesse
ministério, tornando-os de fato soldados regulares, com a obediência
devida às autoridades militares. Algo, portanto, inadmissível para
Prighozhin, que perderia a sua autonomia militar e econômica. Haveria,
também, uma nova distribuição dos butins, seja nos contratos estatais,
seja nos países africanos. Não convém esquecer que no modelo
mercenários/corsários todos são sócios.
Para ter uma ideia da importância do Grupo Wagner, ele está
presente em 13 países africanos, seja com atuação militar propriamente
dita, seja com consultoria estratégica e influência política, seja em
atividades econômicas como a exploração de minas de ouro. Estima-se
que sejam 5 mil homens muito bem treinados, aos quais se
subordinam as tropas locais. Eis os países: Sudão, República Centro
Africana, Líbia, Mali, Moçambique, Camarões, Madagascar, Burkina Faso,
Congo, Guiné Equatorial, África do Sul, Zimbábue e Quênia. Note-se que
os dirigentes desses país, alguns meros ditadores, fazem acordos de
cooperação com a Rússia, que envia para sua implementação o Grupo
Wagner. A cooperação se dá graças à ação conjunta, associada, de Putin e
Prighozhin. Os prejuízos de ambos podem ser, aqui, múltiplos.
Putin e Shoigu tentaram restabelecer a autoridade estatal,
depois de o primeiro ter usado e abusado da dualidade de poder por ele
criada entre mercenários e militares. Ocorre, porém, que o tiro saiu
pela culatra, pois expôs a fratura existente dentro do Estado russo,
como se fossem lideranças mafiosas se digladiando. Ameaçado em suas
posições, Prighozhin marchou para dentro do território russo, ocupando
Rostov-on-Don, sem tiro disparar, contando, muito provavelmente, com o
apoio de militares regulares. Seriam corsários tentando se apropriar da
Armada. E empreenderam um avanço rumo a Moscou, abatendo quatro
helicópteros e um avião em seu percurso. Putin considerou a sua ação um
ato de traição e, no entanto, não enviou a sua Força Aérea para
aniquilálos. Contentou-se com uma negociação, expondo a sua própria
fragilidade.
O Estado russo sai fraturado do episódio. Independentemente de
qual grupo emerja vencedor dentro da elite dominante, o caráter
monolítico de seu governo se esfacelou. Quem decide tornou-se uma
questão crucial, com os diferentes atores esforçando-se por guardar
posições. Escancarou-se, igualmente, a ideologia da Grande Rússia, que
tem em Alexander Dugin um dos seus expoentes, visto que o mercenário
declarou que não havia ameaça ocidental à Rússia, como seus ideólogos
quiseram fazer acreditar. Não apenas os eslavos ucranianos estão se
mostrando melhores guerreiros que os eslavos russos, como o governo
russo teve, inclusive, de recorrer ao líder checheno, Ramzan Kadyrov,
para conter os avanços das tropas de Prighozhin.
A Coroa se fraturou, assim como se estilhaçou sua justificativa
ideológica, graças a um corsário particularmente audacioso.
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