Por Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de
ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap para a Folha de SP, em 28/12/22.
O
relatório final do Gabinete de Transição Governamental dá conta do
estrago provocado pelo governo que enfim acaba neste sábado (31). Embora
alentado, o documento não traz propriamente informações novas. Seu
mérito é proporcionar uma visão panorâmica daquilo que o vice-presidente
eleito, Geraldo Alckmin, coordenador da empreitada, definiu à
perfeição: "Desmonte do Estado brasileiro."
Tão danosa quanto o legado de desgoverno é a herança de
polarização política patrocinada pelo presidente de extrema-direita. Sua
cara mais visível são os grupelhos que fecharam estradas, se instalaram
às portas dos quarteis a pedir intervenção militar e tramaram atos
terroristas com o que foi recentemente abortado em Brasília. O fanatismo
que os move se nutre, de um lado, da complacência dos agentes da ordem
e, de outro, do silêncio cúmplice de quem cultiva a ambiguidade com a
recusa a reconhecer a derrota das urnas.
Os aprendizes de terroristas provavelmente serão dispersados
quando o país voltar a ter governo, de hoje a três dias. Mais difícil
será fechar a fenda que cindiu a sociedade por ação deliberada da
extrema-direita. Pois, se diferenças de valores, preferências políticas e
simpatias partidárias existem em qualquer agrupamento humano, sua
metamorfose em hostilidade mútua e antagonismos irredutíveis é obra de
quem aposta tudo na radicalização.
Recente pesquisa da Genial-Quaest —"O Brasil que queremos"—
indica que 9 em 10 cidadãos pensam que o país saiu mais dividido das
eleições de outubro passado. Parcela significativa deles se reconhece
como anti-PT (40%) ou pró-PT (35%).
Os dois grupos habitam universos díspares a mais não poder:
buscam informações em mídias diferentes ou em redes sociais, se
inquietam com assuntos distintos. A rejeição das cotas raciais; da
expressão pública de afeto entre pessoas do mesmo sexo; da expansão dos
direitos das mulheres; e a demanda pela posse e porte de armas povoam a
cabeça dos antipetistas.
Ainda assim, para além das suas diferenças gritantes, parece
haver extensa e talvez surpreendente área de convergência entre os dois
grupos adversários. Une-os o apoio à ação do governo para controlar a
inflação, reduzir desigualdades, gerar empregos e atuar fortemente na
educação; tratar o crime com mão dura e não avançar no direito ao
aborto. É do interesse nacional reduzir a polarização —o que requer boa
gestão econômica, robusta política social, mas também muita criatividade
nas políticas de segurança pública e diversidade, que despolitizem
essas agendas sem reduzir direitos
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