(Editorial - O Estado de SP, 22/12/22)
Em março de 2019, nesta data o então
presidente da Câmara Rodrigo Maia (PSDB-RJ) diagnosticou a existência de
um problema que acabaria por se tornar crônico ao longo do mandato de
Jair Bolsonaro. Ao falar sobre as dificuldades do governo para aprovar a
reforma da Previdência, Maia discorreu sobre a dinâmica entre o
Executivo e o Legislativo e as atribuições que cabiam a cada um dos
Poderes. “O presidente da Câmara, que sou eu, vai continuar dentro da
Câmara, dialogando com os deputados, mas eu não tenho responsabilidade e
nem o governo pode me delegar responsabilidade de construir uma base
para o governo”, afirmou.
Nunca compreendida pelo governo, a mensagem sintetiza o que
foram as relações entre os Poderes nos últimos anos. Muitas vezes, Maia
foi acusado de boicotar os projetos defendidos pelo presidente. É
verdade que o deputado nunca levou a plenário propostas caras ao
bolsonarismo, como as ligadas a costumes, mas também é fato que foi sob
sua presidência que os parlamentares deram aval a marcos como a reforma
da Previdência, a Lei do Saneamento e a Lei do Gás.
O bolsonarismo, porém, não aceita a independência dos Poderes, e
foi assim que decidiu apostar suas fichas na eleição de um aliado para o
comando da Câmara. Em 2020, a Secretaria de Governo deu início ao
orçamento secreto, privilegiando parlamentares dispostos a votar em
Arthur Lira (PP-AL) com as emendas de relator. Inapto e sem disposição
para a articulação política, o presidente cedeu o controle de uma
parcela da peça orçamentária para se manter no cargo e terceirizou a
Lira a função que Maia recusou: formar uma maioria na Casa para aprovar
os projetos de interesse do governo.
Sob esse ponto de vista, há quem veja que o Supremo Tribunal
Federal (STF), ao declarar a inconstitucionalidade do orçamento secreto,
tenha reduzido os instrumentos que o Executivo tem à mão para negociar o
apoio do Legislativo e gestado uma crise para o presidente eleito Luiz
Inácio Lula da Silva. Se isso fosse verdade, isto é, se a
governabilidade construída à base de emendas de relator fosse garantida,
os deputados jamais teriam rejeitado, por exemplo, a PEC do voto
impresso, a maior e mais amarga derrota imposta a Bolsonaro.
É claro que a intenção inicial não era essa, mas quem mais se
beneficiou do esquema foi Lira. Não é coincidência que o orçamento
secreto tenha nascido e morrido às vésperas da eleição do comando da
Câmara. Com recursos bilionários à sua disposição, distribuídos por
critérios que só ele conhecia, Lira não perdeu nenhuma votação na Casa, à
exceção da PEC do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). As
negociações entre Lula e o presidente da Câmara para aprovar a PEC da
Transição provam que a base aliada, afinal, nunca pertenceu a Bolsonaro.
Explicam, também, as razões pelas quais o moribundo governo acabou no
dia em que ele perdeu a eleição, em 30 de outubro.
Não há dúvida de que as emendas de relator facilitaram a vida
de Bolsonaro, mas o que elas realmente garantiram foi a onipotência da
Mesa Diretora. A instituição legislativa, pela primeira vez na história,
assumiu uma função típica do Executivo e passou a executar uma parte do
Orçamento. As emendas, por fim, fortaleceram a posição do presidente da
Câmara perante o próprio plenário de deputados, desequilibrando as
relações entre os parlamentares a ponto de, até agora, não haver
desafiantes para disputar a eleição com ele em fevereiro.
A ausência das emendas de relator cria, portanto, mais do que
uma chance para a reconstrução das relações entre Executivo e
Legislativo a partir de novas bases. Abre, também, uma oportunidade para
restabelecer as condições de igualdade entre cada um dos 513
parlamentares. O orçamento secreto, afinal, sujeitou todos aos desígnios
da Mesa Diretora e retirou a autonomia dos deputados para votar
conforme a orientação de seu partido ou sua própria consciência. O fim
do instrumento pode, por fim, representar o resgate da maior virtude do
plenário: a garantia de que cada voto tem exatamente o mesmo valor.
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