Por Leandro Karnal, para O Estado de S. Paulo,em 08/05
Alguns “ismos”
colaboraram: Cristianismo, Islamismo, Socialismos... As redes sociais e a
própria evolução da ideia de Democracia também ajudaram a ladrilhar
este chão. Do que estou falando? Da construção de uma ordem simbólica
baseada na ideia de igualdade. Se existe diferença social, ela teria
sido baseada no pecado ou na construção de mecanismos injustos de
exclusão econômica. Porém, no fundo, todos seríamos ou deveríamos ser
iguais. A igualdade é concebida como a realidade e a desigualdade como
uma anomalia produzida pelo desvio de um plano natural ou divino.
Para Rousseau, temos uma perfectibilidade que, juntamente com a
liberdade, permite nossa distinção dos animais. Claro, o homem de
Genebra também percebe que essa característica é fonte de quase toda
infelicidade. Criamos um contrato social e, ao mesmo tempo, a
desigualdade. Alguém se apropriou de uma parte da terra comum e ninguém o
contestou. Em Rousseau, em Marx ou em Jesus, a igualdade era o plano
original e feliz. Houve um desvio ou uma queda do homem natural para o
que vemos agora.
Proposta por filósofos, defendida por profetas e estimulada por
brechas abertas a partir da Revolução Francesa, paira sempre a ordem
simbólica ideal da igualdade. O que mudou? O mundo é desigual há
milênios, porém, agora, há redes sociais.
Há mais de 200 anos, se o povo quisesse ver Versalhes, teria de
invadir o palácio em gesto com sangue e ousadia. Hoje, Maria Antonieta
posta seus looks nas redes todos os dias: “Eu no Salão dos Espelhos com
meus sapatos novos kkkkk”; “Sextei com brioches”... A vaidade, o
interesse, a dor e toda espécie de novas formas de imaginário social
elaboraram a explosão do ressentimento.
Ressentido é quem sente duas vezes. Sente pelo que não possui e
tem nova dor pela alegria que identifica naquele que tem. Freud falou
sobre a “covardia moral do neurótico”. O neurótico se considera
superior, moralmente acima da vulgaridade do mundo, todavia, incapaz de
mudá-lo. Não perdoa, não age, apenas sente e, ressente. O espaço de ouro
para o ressentido é o mundo agressivo das redes. Lá, a covardia pode
vir com anonimato, destilar veneno, atacar, agredir e mostrar como o meu
inimigo é inferior e imbecil. O que deriva disso? Nada, é uma
impotência reconhecida, diluída na incapacidade de o ressentido assumir
seu próprio desejo e de agir.
Veja uma distinção importante: existe desigualdade no mundo. Há
pessoas que se revoltam contra ela e agem para mudá-la. Caridade,
política, revolução: são três caminhos comuns de reação à carência de
muitos.
Há outros. Penso em quem não age, reflito sobre o ressentido.
Ele interpreta a felicidade alheia como retirada dele. Aquele que sorri,
no fundo, retirou do meu rosto a alegria. O bom corpo dela/dele
estragou o meu. A viagem bonita foi feita em detrimento da minha. A vida
que vejo na internet foi roubada de mim. Posso perdoar você por tudo,
menos por ser mais feliz do que eu.
De novo: existe desigualdade social e algumas pessoas agem
contra. O ressentido não está preocupado com ela, ele está irritado com o
gozo material ou emocional que vê nas redes. Todavia, ele disfarça sua
dor em julgamentos sociais. Alguém postou a compra de um celular de dois
mil dólares? O ressentido grita: daria muitas cestas básicas para uma
comunidade. Ele tem razão, e o celular que o ressentido usa para isso
também poderia virar feijão para muita gente. Essa é a diferença entre
consciência social e ressentimento, entre ação e pura dor, entre
sentimento e ressentimento.
A pessoa que luta por justiça social, por motivos filosóficos
ou religiosos, fica perturbada pelo fato de que alguns possam ter um
tênis caríssimo e tantos não tenham comida mínima. O ressentido quer o
tênis para ele e, não conseguindo, nega-o a qualquer pessoa. Muitos
movimentos políticos foram feitos assim: substituir uma forma de
dominação que não me beneficiava por uma que me traga vantagens. Claro:
tudo em nome do bem...
Separar Freud de Marx pode ser necessário. A dor pessoal pode
ser um ponto de partida para qualquer envolvimento político, nunca
deveria ser o de chegada. Muitas vezes, Maria Antonieta nos irrita
porque gostaríamos de comer brioches no ambiente luxuoso. Como isso é
feio como sentimento, melhor afirmar que buscamos a justiça social e a
igualdade. O ressentido é um invejoso fracassado tingido com o verniz de
Madre Teresa de Calcutá. A busca de uma genuína melhoria da dor alheia
por empatia pura é tão rara na luta política como a vocação da freira
albanesa na Índia no campo religioso.
Ampliemos. Fui uma criança em uma geração limitada com regras
severas e punições diretas. Por que será que crianças mimadas me irritam
hoje? Vivem o deleite que me foi negado?
Conhecer a si é o desafio que o Templo de Apolo em Delfos nos
envia sempre. Pelo menos saberíamos que estamos lutando com moinhos
reais e não gigantes alimentados pela minha dor quixotesca. Essa tem
sido a minha esperança: lutar com a minha dor de forma consciente e não
ser dominado pelo que me incomoda.
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