Por Moisés Naím para O Estado de S. Paulo, em 03 de outubro de 2022
A globalização acabou.
O protecionismo de Trump, o Brexit, os problemas nas cadeias de
fornecimento criadas pela covid-19 e a agressão criminosa de Vladimir
Putin puseram fim à onda de integração global disparada pela queda do
Muro de Berlim, em 1989. Estes tempos de mercados de ações em baixa e
juros altos darão a última badalada no sino do enterro da globalização.
Esta opinião está em moda – e está quase totalmente errada.
Principalmente do ponto de vista da economia, mas também do ponto de
vista social e cultural. De fato, a surpresa dos dois último anos foi a
resiliência que a globalização demonstrou. Em um período
excepcionalmente turbulento, a integração econômica e social do mundo – a
conexão entre os países – nos surpreendeu mais por sua resistência do
que por sua fragilidade.
RECESSÃO.
De fato, os dados sugerem que a crise financeira mundial de
2008-2009 e a Grande Recessão que ela desencadeou impactaram
negativamente a economia e a política mundial mais do que os demais
eventos de importância global que ocorreram na década passada.
O volume de comércio internacional cresceu muito durante o
período de hiperglobalização (1985-2008), passando de aproximadamente
18% para 31% do valor total da economia mundial. Com a crise de 2008,
essa cifra caiu, se situando em cerca de 28%. E aí mais ou menos ficou
desde então: mantendo-se estável apesar de todos os choques econômicos e
convulsões políticas dos últimos anos.
O protecionismo de Donald Trump reduziu a integração dos EUA ao
restante do mundo. Nos EUA, o comércio caiu de 28% do PIB, em 2015,
para 23%, em 2020. As exportações do Reino Unido para a União Europeia
caíram fortes 14% no ano seguinte ao Brexit. Mas essas oscilações, por
maiores que sejam, foram compensadas por uma maior integração econômica
na Ásia Oriental e na África, onde as conexões de interdependência entre
os países continuam se aprofundando e se ampliando.
PROTECIONISMO.
Mesmo com seus custos, problemas e acidentes, a integração entre os países não morreu
A integração econômica parece ter uma inércia própria, que
resiste a tudo, incluindo a embates tão grandes quanto as guerras
comerciais iniciadas por Trump ou o voto dos britânicos a favor do
Brexit. Uri Dadush, um reconhecido especialista em economia
internacional, constatou que as barreiras protecionistas que foram
erigidas nesses últimos anos tiveram um efeito insignificante no
comércio global. Certamente as cadeias de fornecimento se viram
submetidas a tensões e interrupções que estimularam as empresas a mudar
algumas de suas fábricas para locais mais próximos aos mercados
consumidores. A Europa está experimentando agora, sem dúvida, as
dolorosas consequências econômicas de sua dependência energética em
relação à Rússia. Mas, segundo os dados disponíveis, o efeito global
líquido, considerando essas mudanças transcendentais, não foi uma
redução da integração econômica.
Recordemos também que a globalização vai muito além do
comércio. A globalização se baseia tanto na circulação global de ideias,
atitudes, filosofias e pessoas quanto no comércio de mercadorias. E,
nesse sentido mais amplo, a globalização parece acelerar, não ratear. O
Tiktok possui 1,4 bilhão de usuários espalhados por 150 países, por
exemplo.
Outra prova de globalização ativa e acelerada é a ciência.
Cientistas do mundo inteiro competem com colegas de outros países. É
normal. Fora do normal foi a velocidade com que eles conseguiram atuar
e, em certos casos, se coordenar para conseguir inventar as vacinas
contra a covid-19, produzi-las em grande escala e distribuí-las pelo
mundo, salvando desta maneira milhões de vidas. Se esse exitoso exemplo
de globalização foi possível virar realidade uma vez, poderá se repetir
em muitas outras oportunidades.
RISCOS GLOBAIS.
Naturalmente, a globalização não é invulnerável e nem todas as
suas consequências são positivas. Os níveis de desigualdade que
coexistem com a globalização são inaceitáveis, por exemplo. Se a guerra
na Ucrânia se prolongar muito mais ou – tragicamente – se tornar
nucelar, ela poderia cortar fornecimentos cruciais de energia, alimentos
e fertilizantes que constituem a coluna vertebral da globalização
econômica.
Ainda pior, um ataque militar chinês contra Taiwan poderia
acabar com grande parte da capacidade de fabricação de microchips,
incapacitando um mundo que depende cada vez mais das tecnologias
digitais. No futuro próximo, a criptografia quântica poderia deixar
obsoleta toda a criptografia que existe atualmente na rede. Isso
causaria uma severa crise de cibersegurança e limitaria a globalização
digital.
Essas ameaças existem. São reais e graves. Mas se conjugam em
tempo futuro. No presente, o mundo está integrado mais profundamente do
que uma década atrás. Apesar de seus custos, problemas e acidentes, a
integração entre os países não morreu. O objetivo adiante é como
proteger-nos de seus defeitos e aproveitar ao máximo as portas que ela
abre.
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