(Raquel Franzim e Ana Claudia Cifali respectivamente, diretora
de educação e culturas infantis do Instituto Alana e coordenadora
jurídica do Instituto Alana - O Estado de S. Paulo, 07) Ao longo dos
primeiros 18 anos de vida, a criança e o adolescente vivem
transformações físicas, cognitivas e emocionais que estruturam os anos
que seguem e a vida adulta. Esse período, que é breve, produz efeitos
duradouros. É por isso que o dado revelado de que o número de pessoas
passando fome dobrou do final de 2020 para o começo de 2022 em lares do
País com crianças de até 18 anos (25,7% das famílias) é o anúncio da
tragédia humanitária que vivemos no presente com potencial de arruinar
uma geração inteira no futuro. Durante as férias escolares, com a
interrupção da oferta de merenda escolar, este quadro se agrava ainda
mais.
Apenas 26% das crianças de 2 anos a 9 anos no Brasil fazem três
refeições por dia. Famílias negras e chefiadas por mulheres são as mais
impactadas, escancarando como a raça e o gênero são características
decisivas para uma vida de privações e para a desigualdade na garantia
de direitos em nosso país. A alimentação é o direito social mais básico
da vida humana. A interrupção do acesso regular e permanente à
alimentação de qualidade e em quantidade suficiente gera um efeito
cascata nos demais direitos, impactando o desenvolvimento e freando a
autonomia humana, essencial para um Estado Democrático de Direito.
Uma criança que passa fome não deveria preocupar apenas sua
família: é a demonstração de que toda a responsabilidade compartilhada
prevista no artigo 227 da Constituição federal falhou. Falhamos nós,
sociedade e suas instituições, e falham os governos, que deveriam
protegê-la acima de tudo, em primeiríssimo lugar, de toda ordem de
violência e crueldade que a fome provoca.
Entre os direitos sociais mais afetados ao passar fome
encontra-se o direito à educação. Tanto não há condições para aprender,
participar e se desenvolver integralmente que o País criou ainda em 1954
o consolidado Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
Posteriormente, foi incorporado como direito na Constituição federal de
1988 nos artigos 205 e 208 como um programa suplementar, ou seja,
fundamental na garantia de qualidade na educação.
Responsável por garantir 15% das necessidades nutricionais
básicas da vida, o programa é uma política pública baseada em evidências
que comprovam que, do ponto de vista cognitivo, a desnutrição infantil
prejudica o desenvolvimento da atenção, a memória, a leitura e a
aprendizagem de linguagens como um todo.
A equação é simples: com menos energia e nutrientes, a
performance ao participar da vida escolar diminui e as dificuldades de
aprendizagem aparecem. Importante destacar que a fome provoca efeitos
sistêmicos no desenvolvimento da criança, desde o crescimento neuromotor
abaixo do esperado até, também, prejuízos em habilidades
socioemocionais como iniciativa e tomada de decisão. Além disso,
permanecer na escola nessas condições se mostra difícil, em alguns casos
gerando o abandono escolar para busca de trabalho na tentativa de
ampliar a renda familiar, como aponta relatório da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef) em 2020.
Por isso, uma boa alimentação escolar é fundamental, inclusive
no período de férias, com programas próprios e específicos para alcançar
as crianças e adolescentes que passam fome. Ainda que não responda a
todo o problema da fome e da pobreza, a alimentação escolar faz parte da
adoção de uma estratégia multidimensional, que inclui a elevação da
agenda como prioridade política, com programas consistentes de
redistribuição de recursos, assistência, renda e trabalho, sobretudo
para as famílias mais afetadas. Infelizmente, dados revelam que o País
não apenas deixou de apresentar essas soluções, como, em virtude das
escolhas políticas recentes do governo federal, empurrou mais pessoas
para a privação alimentar.
Com baixa competência técnica do Ministério da Educação (MEC)
para resolver os problemas estruturais do setor durante a pandemia de
covid-19, o governo federal tem priorizado questões irrelevantes para a
população, entre elas o ensino domiciliar, e passa a escrever, agora,
mais um capítulo desesperador. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE), órgão técnico vinculado ao MEC, palco recente de
disputas políticas, vem nos últimos anos reduzindo a previsão e a
execução orçamentárias do Pnae. Segundo dados do próprio governo federal
no Portal da Transparência, a tendência é de diminuição de recursos
destinados à alimentação escolar. Tudo isso em meio ao agravamento do
cenário da fome.
Em outubro, o País passará por eleições para os governos
federal, estaduais e para o Legislativo. Sem ter os direitos de todas as
crianças e os adolescentes (especialmente os que passam fome)
priorizados hoje, no centro do debate e das políticas públicas, o amanhã
pode ser tarde demais para eles e para todos nós como sociedade e país.
Jornalista Jarbas Cordeiro de Campos
- Jornalista Jarbas Cordeiro de Campos - Pós Graduado em GSSS - Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde.
- Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil
- Jornalista formado pela FAFI-BH,especializado em Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde pela ESPMG. "O Tribunal Supremo dos EUA decidiu que "só uma imprensa livre e sem amarras pode expôr eficazmente as mentiras de um governo." Nós concordamos."
08 agosto 2022
CRIANÇAS E ADOLESCENTES NUM PAÍS FAMINTO!
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